Do sol nascente aos tristes trópicos

A imigração japonesa no Brasil

Henrique S.
9 min readAug 8, 2020

Em 18 de junho de 1908 ancorava no Porto de Santos o memorável Kasato Maru (笠戸丸), o primeiro navio com imigrantes japoneses a desembarcar em terra brasilis. O navio (anteriormente russo, cedido ao Japão após a Guerra Russo-Japonesa) trouxe consigo 165 famílias (781 pessoas) com o sonho de ganhar muito dinheiro em pouco tempo.

Qual seria o motivo para que, justamente nesse momento da história, começasse a haver um grande fluxo migratório do Japão para o Brasil? O que poderia ter feito com que tantas famílias decidissem fazer uma viagem para o outro lado do planeta, com meses de duração, e começar uma nova vida num país totalmente estranho em seu clima, sua população, sua alimentação, seu idioma e seus costumes?

Dos samurais aos nipo-brasileiros: contexto histórico

No século XIX o Japão era um país superpovoado, porém ainda vivia num sistema de produção autossuficiente, algo semelhante ao que entendemos por feudalismo. Esse sistema era o xogunato, no qual os senhores de terra eram denominados xoguns: nobres que controlavam a política e a economia e que detinham mais poder do que o próprio imperador.

Até meados do século XIX, o país vivia o chamado Período Edo (Xogunato Tokugawa). Nessa época, o Japão era considerado pelo Ocidente (modernizado, industrializado, capitalista) um país atrasado. E de fato o era. Fechado, sem indústrias e sem muita influência dos países ocidentais.

Primeiro xogum da Era Tokugawa: Tokugawa Ieyasu (1543–1616)

Contudo, no ano de 1868, o Japão passou por um grande conflito político interno que mudou para sempre os rumos do país. Esse conflito, que a bem dizer foi uma guerra civil, com um lado defendendo o sistema antigo do xogunato, e o outro lado defendendo a família imperial com a promessa de modernizar o país, foi denominado Restauração Meiji.

A maior parte das obras cinematográficas e literárias a respeito dos samurais se passa justamente nesse período. Com a vitória do Império sobre os xoguns, o Japão finalmente pôde realizar a desejada abertura comercial e cultural para o exterior, vendo-se finalmente tomado pelo capitalismo e pela modernização trazida do Ocidente. Foi assim que Japão transformou-se no que designamos por Estado-nação.

Samurai X

O filme O Último Samurai e o mangá/anime Samurai X retratam a transição entre o fim da Era Tokugawa e o início da Era Meiji, mostrando a luta pela sobrevivência dos samurais — o grande símbolo da era dos xoguns –, que com sua honra purista, suas katanas, cavalos e arcos-e-flechas guerreavam contra um império que trazia cada vez mais tecnologia para o campo de batalha, com metralhadoras, canhões e bombas. A Restauração Meiji foi o que marcou, assim, o fim da era dos samurais.

Cena do filme O Último Samurai (2004)

Ora, para uma ilha que viveu durante séculos de forma autossuficiente, a rápida e repentina modernização causou drásticas mudanças na recém-criada nação japonesa. A economia e o modo de vida das pessoas foram bastante alterados, o que, em pouco tempo, acabou provocando um grande desemprego no país. Desse modo, foi nesse contexto em que ofertas de imigração começaram a ser oferecidas aos japoneses. Um dos países destino era o Brasil.

Cartazes de propaganda para japoneses emigrarem para o Brasil

Nesse mesmo período, aqui em Terra de Santa Cruz, o sistema escravocrata estava ruindo e, com a Lei Áurea, teve seu fim em 1888. Isso provocou uma alta demanda de mão-de-obra nas fazendas brasileiras. Vale lembrar que o Brasil ainda não era industrializado nesse período, coisa que só viria a acontecer com Getúlio Vargas, a partir da década de 1930. Assim, imigrantes de diversos países acabaram sendo contratados para trabalhar na produção agrícola brasileira, principalmente na de café no interior paulista. Como sabemos, os japoneses estavam entre eles.

Em 1907, um acordo de imigração entre Brasil e Japão foi firmado em São Paulo. Em 28 de abril do ano seguinte, o Kasato Maru parte do Japão para chegar em terras brasileiras dali a dois meses. Esse primeiro grupo de imigrantes japoneses a pisar em solo brasileiro foi contratado para trabalhar nas lavouras de café no oeste paulista. Esse foi o começo de uma longa relação entre os dois países.

O navio Kasato Maru

Suor, preconceito e malandragem: a adaptação ao Brasil

Chegando ao Brasil, os japoneses encontraram diversas dificuldades de adaptação. A diferença entre os idiomas, entre os hábitos alimentares, entre os modos de vida e entre os climas produziu um enorme choque cultural. Por terem um fenótipo bastante distinto do que os brasileiros estavam acostumados (branco europeu ou negro africano), os japoneses acabaram sofrendo de muito racismo e discriminação.

Com a imigração tendo ocorrido bem na época em que o darwinismo social estava em voga, os asiáticos que vieram para cá eram considerados como pertencentes a uma raça inferior. Muitos intelectuais e políticos da época se colocavam contra a vinda de japoneses para o Brasil, pois isso prejudicaria o almejado “branqueamento”, o qual seria propiciado somente pela vinda de imigrantes europeus.

A Redenção de Cam, de Modesto Brocos (1895)

Dessa forma, desde o princípio de sua chegada, já ficou claro aos japoneses que a vida aqui não seria tão fácil e próspera como eles haviam imaginado. Muitos dos imigrantes tinham a ilusão de que, ao chegarem aqui, encontrariam um rápido enriquecimento, acumulariam bastante dinheiro e, então, poderiam voltar para o Japão.

No entanto, o imigrante aqui era submetido a um trabalho degradante, com muito esforço físico e pouca remuneração. Lembremos que a maioria dos empregadores tinham sido senhores de escravos havia pouco tempo. Além disso, o preço da passagem para o Brasil era descontado no salário e tudo o que o imigrante consumia deveria ser comprado no armazém do próprio fazendeiro que o empregava. Sendo assim, em pouquíssimo tempo as dívidas acumuladas pelos imigrantes já se tornavam enormes.

Imigrantes japoneses trabalhando nos cafezais

Todavia, apesar de tudo isso, a imigração japonesa se intensificou na década de 1930. A maioria dos novos imigrantes se instalou no estado de São Paulo (cerca de 75%) para trabalhar majoritariamente nos cafezais. Mas alguns começaram a trabalhar também em outros cultivos, como no de arroz, de chá e de morango. Ademais, alguns grupos de imigrantes foram trabalhar no Pará para o cultivo de pimenta-do-reino. Desse modo, já nessa mesma década, o Brasil se tornou o país que mais abrigava japoneses fora do Japão.

Corações sujos: a Segunda Guerra e adiante

Um período muito conturbado para os japoneses que aqui habitavam foi a Segunda Guerra Mundial. A comunidade japonesa presente no Brasil foi duramente atingida por medidas restritivas quando o país, em janeiro de 1942, rompeu as relações diplomáticas com o Japão e depois, em junho de 1945, declarou guerra ao Império japonês.

Nessa ocasião, muitas escolas japonesas no Brasil foram fechadas, bens particulares de indivíduos e de empresas japonesas foram confiscados, os japoneses foram proibidos de dirigir quaisquer tipos de veículos automotores e, além disso, alguns japoneses, alemães e italianos (nacionalidades do Eixo) foram confinados em espécies de campos de concentração, dos quais eles eram impedidos de sair. Fora dos campos, reuniões entre pessoas dessas nacionalidades também foram proibidas, bem como falar seus idiomas em público e imprimir jornais nesses idiomas.

É importante ressaltar que esses campos de concentração não eram, de maneira alguma, como os “campos de concentração nazistas”, nos quais havia trabalho forçado e assassinatos em massa. Os campos de concentração daqui serviam apenas para isolar as pessoas cuja pátria estava em guerra com o Brasil.

Ironicamente, em 1945, o navio Kasato Maru, utilizado na guerra, foi bombardeado por aviões soviéticos e afundou no Mar de Bering. Em agosto desse mesmo ano, a guerra tem seu fim com a rendição do Império do Japão.

A Rosa de Hiroshima que fez o Imperador se render

A derrota na guerra e a rendição do Japão foi inadmissível para alguns japoneses. Na época, o xintoísmo era a religião oficial do país, sendo o Imperador a figura central, tanto como chefe de Estado, tanto como líder religioso. Portanto, além de a ideia de rendição ferir o “orgulho japonês”, muitos realmente acreditavam que o Imperador Hirohito era uma espécie de “descendente dos deuses”, o que faria com que a derrota fosse impossível.

Nesse cenário, surgiu no Brasil um grupo chamado Shindo Renmei (臣道連盟), cujo nome pode ser traduzido por algo como “Liga do Caminho dos Súditos”. Seus membros eram fiéis ao imperador e não acreditavam na derrota japonesa. Eles achavam que o Japão havia vencido (ou venceria) a guerra e que, portanto, deveriam espalhar a “verdade” e punir os derrotistas, defendendo assim a honra do Imperador. Em vista disso, eles sentiam-se no direito e no dever de matar os nipo-brasileiros que haviam aceitado a derrota.

Integrantes do Shindo Renmei

Os assassinatos cometidos pelo Shindo Renmei, juntamente ao sentimento antinipônico efervescente no Brasil, foram motivo para inúmeros conflitos violentos entre brasileiros e japoneses. Contudo, em menos de um ano, depois de algumas mortes e de algumas prisões, sucedeu-se a extinção do grupo.

O livro Corações Sujos, de Fernando Morais, conta a história dessa organização, que atuava principalmente na região de Bastos e Tupã, no interior de São Paulo. O nome do livro se deve ao fato de que, para os integrantes do Shindo Rimmei, aquele que aceitara a derrota japonesa na guerra possuía o “coração sujo” e, portanto, deveria ser exterminado.

Trailer do filme Corações Sujos (2012)

Após o fim da guerra, o sentimento anti-Japão persistiu no Brasil, mesmo com o Tratado de Paz entre o Brasil e o Japão, em 1952, e o Acordo de Comércio Nipo-Brasileiro, feito naquele mesmo ano. E passada a década de 1950, o fluxo de migração do Japão para o Brasil cessou quase que totalmente.

Atualmente, o Brasil conta com cerca de 1,5 milhão de nipo-brasileiros (algo em torno de 0,7% da população brasileira), que estão, em sua maioria, no estado de São Paulo. Na capital, no bairro da Liberdade, está localizado o Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, inaugurado em 1978. O bairro é considerado o maior “templo” de heranças da história japonesa no Brasil.

Dekasseguis brasileiros (foto do site Japão em Foco)

Na década de 1980, o fluxo migratório entre Brasil e Japão se inverteu. Por fatores principalmente econômicos, o Japão flexibilizou suas leis de migração e começou a receber os dekasseguis — imigrantes que vão ao país para adentrar à força produtiva japonesa em caráter temporário. Dentre eles, muitos são nipo-brasileiros com o mesmo desejo que os primeiros japoneses a pisarem no Brasil tinham quando chegaram aqui: juntar bastante dinheiro e, um dia, voltar para a sua terra natal.

Para quem se interessar sobre o tema de imigração, especialmente a japonesa no Brasil, trago aqui algumas indicações:

  • SASSEN, S. Sociologia da imigração. Porto Alegre: Artmed, 2010.
  • SAYAD, A. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: EDUSP, 1998.
  • HASHIMOTO, F; TANNO, J; OKAMOTO, M. (Orgs.). Cem anos da imigração japonesa. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
  • ANDO, Z. Estudos sócio-históricos da imigração japonesa. São Paulo: Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 1976.
  • MORAIS, F. Corações sujos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • HATANAKA, M. L. O processo judicial da Shindo-Remmei. São Paulo: Annablume Editora, 2002.
  • DEZEM, R. Shindô-Renmei: terrorismo e repressão. São Paulo: Arquivo do Estado; Imprensa Oficial.
  • GALIMBERTTI, P. O Caminho que o dekassegui sonhou. São Paulo: EDUC/FAPESP; Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2002.

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